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sexta-feira, 11 de março de 2011

Arcos de Muitas Iris- Festa do Kiño

 Como sempre fazia no mês de maio,  preparei-me para fazer uma viagem a São Paulo. Já há algum tempo, desde quando decidi transformar Brasília em minha terra, a coisa funcionava do mesmo jeito. Eram datas que coloquei como imprescindíveis para eu rever aqueles que eu amava e que povoavam a minha história - natal ou ano novo e aniversários do pai e da mãe, de irmãos, da tia querida, de sobrinhos e, principalmente, o aniversário do Kiño. Afinal, ele foi muito importante na minha vida quando optei em tirar qualquer tipo de máscara e viver plenamente a vida. Devo confessar que teve muita paciência comigo. Primeiro, foi se chegando bem de mansinho na imensa repartição que trabalhávamos. Ofereceu ajuda burocrática. Aceitei, foi confortável. Depois me convidou para almoços, assistir jogos no Pacaembu - como bom corintiano que era, festas na casa dele e tudo que pudesse nos aproximar cada vez mais. Eu tentava simular o padrão da época. Vinha com histórias mirabolantes e rocambolescas sobre namorado do interior, rapazes interessantes e outras desculpas esfarrapadas. Mas, dono de uma paciência invejável, soube aguardar o momento. E quando esse momento aconteceu, Kiño se fez presente. Acompanhava-me em todas idas e vindas. Fazia isso com tanta tranqüilidade que nunca julguei seus conselhos como cabrestos, mas os aceitava como sendo a expressão fiel de quem me amava. Fizemos durante muito tempo verdadeiras maratonas na noite paulistana e com isso conhecemos muita gente. Gente de todos os tipos que agora já não sei mais onde foi parar. Kiño adorava cinema. Tinha um pequeno diário com todos os filmes que assistira durante a sua vida, mas, na realidade, ele nem precisava disso, porque sempre sabia colocar uma cena ou um diálogo curioso de algum filme ou mesmo de uma peça de teatro. Sabia fazer com tanta maestria que,  para os menos avisados, poderia passar como pura criatividade sua... Naquele dia eu estava eufórica porque ira revê-lo. No avião fiquei pensando quem tanto poderia estar nessa festa já que nossos amigos de antigamente tinham se transformado em nuvens... Apertei a campainha com uma expectativa muito grande. Como de hábito, quando a porta se abriu vieram exclamações ruidosas  de todos os presentes. Muitos abraços, muitos beijos, muitas comidas gostosas, que o dono da casa sabia fazer com perfeição. Trazia aquele jeito característico do povo do interior e sempre surpreendia com alguma receita nova que uma das suas irmãs havia lhe mandado. Acho que eram umas seis irmãs, no mínimo. Aquela festa já trazia uma novidade para mim e eu tinha que trabalhar com cuidado essa novidade. Desde quando nos conhecemos e estabelecemos nossa cumplicidade, enquanto eu já havia me comprometido com uma dezena de pessoas, o Kiño jamais havia namorado sério. Namorar sério aqui, quer dizer, ficar mais de, pelo menos, seis meses com alguém, ter compromissos de férias, traçar alguns planos para o futuro, e até mesmo, morar juntos dividindo banheiro e pasta de dente. Pois naquele dia eu iria conhecer aquele a quem resolveu dar a sua mão. Tracei muitas possibilidades de perfis, como por exemplo, é alto, tem bigode, usa óculos, entende de teatro, cinema e música, características indispensáveis para quem quer ser seu namorado. Afinal, até aquele momento ele não tinha tido ninguém, porque sua triagem era rigorosa. Erro de português, nem pensar. Formou-se em geografia em uma universidade famosa paulista e lá conheceu um grupo dos tidos intelectuais da época para quem nada poderia passar como traço de ignorância. Quem cometesse qualquer deslize era logo enxovalhado e excluído do grupo. Com certeza o novo namorado preenchia essas características todas, pois do contrário não teria resistido uns catorze meses até aquela data. Foi então que conheci Adaílton. Tudo começou quando Kiño fazia a conhecida peregrinação na Rua Vieira de Carvalho, aquela rua que liga a Praça da República com o Largo do Arouche, que, há muito tempo, se traduziu em trajeto daqueles que necessitavam de companhia para uma noite. Adaílton era do Paraná, casado e com filhos, mas um dia resolveu mudar a sua história e tomou um ônibus com destino a cidade dos sonhos. Em suas andanças, ficou sabendo que ali, naquele quadrilátero, poderia encontrar uma razão maior para a vida. Imagino que no primeiro momento, o Kiño deve ter dados gritinhos silenciosos de desespero pelos erros de português. Mas, o moço tinha muito mais a oferecer do que esses frágeis detalhes - tinha uma certa predisposição para o amor. Depois fiquei sabendo que também sabia fazer pão e licores muito saborosos. Tentei iniciar uma conversa daquelas que tenta ser diferente, mas não foge ao lugar comum. Com todo o ciúme de amiga-irmã, à primeira vista, obviamente, não fui com a cara de Adaílton. Comecei a compará-lo com aqueles que ficaram no passado e que nunca souberam falar ao coração do Kiño. Com certeza para mim naquele momento todos eles superavam qualquer manifestação de simpatia da parte dele. Enfim, a festa se transcorreu como sempre. De repente, alguém se lembrava de perguntar por outro que estava ausente ou então de contar alguma história bizarra, que era contada e recontada em quase todas as festas. Comecei a reparar em um instante que aquele encontro era um pouco diferente dos demais.  Além de contar com a presença de um namorado, o ambiente só contava com mulheres. Eram as amigas que Kiño sempre teve o cuidado de nunca se separar. Algumas vinham do tempo da velha repartição pública, como eu, outras eram da universidade e outras eram amigas colhidas pelas peregrinações da vida. Quando o aniversariante sentiu que ia começar a dar o cansaço natural nos presentes, pois já estávamos por volta da uma da madrugada, resolveu pedir a atenção de todos porque precisava comunicar alguma coisa importante. Risos, piadas, alguém tentou adivinhar o que poderia ser e lançou a idéia que ele teria comprado um carro, uma vez que odiava dirigir. Nada, entretanto, teve eco. Kiño tentou algumas palavras. Não conseguiu formar nenhuma frase. Passados alguns minutos, lentamente levantou a cabeça e disse: “aquela senhora resolveu se hospedar aqui”. Ninguém entendeu e o silêncio tomou conta de todos. Então, declarou firme, como sempre fazia quando queria chocar: “sou soropositivo”. Foi só uma flecha, porém todos os corações explodiram, ficaram arrebentados, sangrando... Definitivamente, não havia o que dizer... Então, ele foi enfático: "Sou soropositivo com algumas manifestações. Vocês estão lembradas quando voltei da Bahia e passei mal durante um tempo? Foi ali que tudo começou. Adaílton também é soropositivo, só que até agora nada foi detectado. Quero que saibam o quanto ele tem sido importante para mim.  Meu amor, meu enfermeiro, meu companheiro, meu irmão, meu médico e meu amante. Peço-lhes que todo amor que me deram até hoje seja dado para ele também".
 Olhou mais uma vez para todas nós, esperou um pouco para ver se alguém tentaria alguma frase piegas, mas como ninguém ousou, encheu o pulmão e disse mais uma vez com sua voz firme: “afinal, vamos ou não vamos comer o bolo de aniversário? Eu lhes asseguro que esse não será o último”.
  Realmente não foi o último bolo de aniversário. Administrou a doença com a cabeça na terra e muito amor na vida de forma a ficar conosco mais dez anos. Alguns se foram nesse período por muitas outras causas. Quando ia aos velórios sempre encarava os presentes com um sorriso de forma a dizer: “não adianta se assustar que eu ainda estou por aqui”. Adaílton não sobreviveu nem um ano após a morte de Kiño.
Somente a partir desse dia entendi o que é amar.

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