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sexta-feira, 11 de março de 2011

Arcos de Muitas Íris - Na igreja, rezas e sonhos

Não é fácil ter doze anos na cidade de São Paulo. Não é fácil também carregar dentro de si algo que não se explica. Não é fácil ainda, carregar alguma coisa dentro de si e não saber como explicar e nem saber a quem contar. Imagine tudo isso e acrescente ser católica em 1964. Imagine, imagine, imagine.
A igreja era linda. Barroca, construída em taipa. Adorava ir até o museu do Ipiranga para ver a miniatura de São Paulo no tempo da independência. Era maravilhoso ver a minha igreja lá, desde aquele tempo. Dizem que no percurso do dia 7 de setembro, D. Pedro passou por lá. Será que ele se emocionou o tanto que eu me emocionava? Tinha um cristo nu coberto por um manto vermelho. Bem vermelho. E o Cristo me olhava, me olhava, me olhava... Talvez tivesse as mesmas dúvidas que eu tinha. Ou, então, simplesmente me avisava que não precisava ter dúvidas. O que me intrigavam eram as suas feridas. Eram profundas. Aí eu pensava que a culpa era toda minha. Será que era só por conta dos meus pensamentos ou também porque eu tinha fumado escondido. Tudo era pecado. Eu só não conseguia distinguir qual era o maior. Para a missa aos domingos, minha mãe e minha irmã caprichavam na minha roupa e nos meus sapatos. Os sapatos eram sempre lindos. Depois que cresci nunca mais consegui comprar sapatos tão lindos, embora eu compre sempre muitos sapatos, talvez, para um dia conseguir comprar um tão lindo quanto aqueles. Havia um banco que parecia ser reservado para a minha família. Não que fossemos assim tão importantes. Aliás, não éramos nem um pouco importantes. Mamãe fazia parte da Congregação das Senhoras da igreja, mas nunca teve uma participação muito expressiva. Nunca foi presidente, secretária ou tesoureira. Era apenas uma pessoa muito querida. Talvez pela empatia que ela provocava e provoca até hoje em quem se aproxima dela. Papai mal conseguia assistir a missa inteira. Fumante desde os treze anos de idade, sempre considerou a missa muito longa para um intervalo entre os cigarros. Minhas irmãs, na realidade, não gostavam muito daquela igreja porque diziam que só tinha velhos e que não dava para paquerar ninguém. Eu, ao contrário, gostava muito. Prestava atenção na soberania do Padre. Era muito bravo e rezava a missa em latim em um tom bem alto, a todo pulmão. Os sermões eram sempre para dar bronca nos pobres fiéis. Fiéis mesmo, pois todos os domingos estavam sempre lá. Sempre os mesmos. Dona Darcy com seu Juca e os meninos. Mamãe e Dona Darcy tinham certa cumplicidade, pois acreditavam que eu e o mais velho deles um dia nos casaríamos. Pobre Mamãe! Acalentou mais sonhos além desse. No início da rua havia um casarão de um pessoal quatrocentão que insistia em sobreviver aos arranha-céus da modernidade. Dessa casa, freqüentavam a missa: a empregada, também quatrocentona, uma das velhas senhoras, talvez mãe ou tia, e uma das netas. As irmãs mineiras do meu prédio também lá estavam sempre. A Verinha que estudava em um colégio tradicional, sua mãe e seu padrasto. Eles tinham cara de ricos. Mas, depois fiquei sabendo que era só a cara. Mais algumas Donas do tipo, Bela, Clarinda, Hermínia, Olga, cujos maridos e filhos se recusavam a acompanhá-las na missa das oito. Na rua que abrigava uma das laterais da igreja, havia um pequeno edifício que fora construído para a habitação de uma só família. Eram duas irmãs elegantes, casadas com seus maridos feios, mas elegantes, com suas filhas bonitas e elegantes, mas que tinham um pé muito grande, por isso, quase que por despeito, minha família chamava-as de “pezudas”. Elas também davam a honra aos domingos na missa das oito.
 Eu era uma figura importante, pois era encarregada da coleta da contribuição dos fiéis. Escutava atentamente o sermão, contando todas as palavras. Não podia dormir, porque assim que o padre acabasse sua bronca matinal, eu tinha que me levantar e começar a passar, banco por banco, arrecadando, a duras penas, o miúdo dinheiro que caia no chapeuzinho de feltro que eu com muita honra carregava. Esse momento era para mim o mais importante de toda a cerimônia. Ficava sabendo quem faltou, percebia as pessoas novas do bairro e principalmente poderia olhar bem no fundo dos olhos de alguém, que se sentava no último banco da igreja. Para mim, era a mulher mais linda que conheci até aquela idade, com exceção, com certeza, da nova mulher do Tony Curtis, que até hoje não sei como se escreve o nome dela. Mas, voltando a minha segunda mulher mais bela, ela só existia dentro da igreja, na missa das oito. Nunca a vi pelo bairro. Nunca soube quem era. Na realidade, não sei descrevê-la e seu rosto para mim, se tornou uma nuvem. Mas seu olhar até hoje anda comigo, escondido, bem guardado, lá fundo. Às vezes, quando estou triste, abro as gavetas da minha alma, olho para aquele olhar e volto a me sentir feliz, como se estivesse novamente olhando para o meu primeiro amor.

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