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sexta-feira, 11 de março de 2011

Doce Ariana - Emoções Reais e Virtuais

Doce Ariana
Capítulo I
Não sei por que às vezes o barulho do mar é mais forte em relação ao barulho da onda anterior. Fico pensando se ele quer me dizer algo ou está bravo mesmo. Quero muito aprender sobre o mar. Estou tentando há um ano, desde o fatídico dia que a Fabiana me falou com voz certeira a palavra "acabou". Disse várias vezes para eu não ter dúvidas. Eu tentei discutir a relação, mas só vinha a palavra "acabou". Parecia criança quando aprende uma palavra. Uns dizem que eu fugi. Outros não dizem nada, mas o certo é que vim parar em um apartamento abandonado da minha família a beira do mar. É um local curioso. Durante 10 meses é uma cidade fantasma. Eu grito bem alto quando caminho a beira do mar e ninguém me escuta. Outro dia pensei ouvir a voz da Iemanjá me respondendo. Nos outros dois meses isto vira um vulcão furioso cuspindo gente de todas as idades, raça, credo, um verdadeiro final dos tempos. Não sobra nada nas lojas e mercados. Sobra muito coisa é no mar. Ele devolve tudo, não sei para quem. Ainda vou descobrir. Há muito tempo não morava sozinha. Muito tempo mesmo. Desde aquela fase de Rio de Janeiro que também foi dureza. Foram dois anos. Solidão total. Mas, daquela eu escapei. E dai tudo girou rapidamente, conheci Leila, signo de peixes, que foi uma paixão de derrubar avisos e placas. Como veio, partiu. Ficou uma louca amizade no lugar. Depois, aí sim, chegou Fabiana. Não parecia coisa para durar - durou e muito.
Tenho dois amigos que estão tentando me segurar desde aqueles dias que vivi morrendo de peninha de mim. Eles vieram me visitar e me disseram: "não, você não pode ficar assim tão sozinha. Tem que entrar em alguma rede virtual de relacionamentos". Eles fizeram questão de me enviar o link da comunidade que eles achavam muito segura. Obediente, entrei. Um verdadeiro aprendizado. Como se escolhe alguém para fazer amizade? Pela foto? São fotos verdadeiras? São pessoas reais? Minha dificuldade não é com a tecnologia. Em tempos de juventude fui programadora de computador de grande porte. Grande porte, não, imenso porte. Depois, passei por tudo, desde o início do pequeno porte até o minúsculo porte do Iphone. Estou chegando aos 60 anos. O que me assusta é o mundo virtual. Tento colocar que meus sonhos são virtuais também para me movimentar melhor nos refúgios cibernéticos. Nos meus sonhos o outro existe, mas não tão parecido com o real como no mundo virtual. Abstrair o outro é que é a minha dificuldade.
A pressão externa quando se termina um relacionamento é angustiante. Todos sabem de tudo e todos têm conselhos a dar. O cerne da questão da voz do povo é que eu tinha que arranjar uma namorada, seja lá quem fosse. O pior disso tudo, é que eu também comecei a acreditar nisso. Até meu amigo do planalto, o Caio, quando aparecia por aqui, dizia: "temos que desencalhar nossa amiga". Aí eu comecei a imaginar a minha namorada: seria Julia, sempre quis esse nome. Remetia a um filme que vi com Jane Fonda e Vanessa Redgrave. Não podia ser loira, queria um pouco mais para morena, assim com cabelos pretos e prateados. Prateados porque a minha Julia teria mais de 60 anos - sessenta e dois estavam de bom tamanho. Quanto à altura não tinha muitas exigências, podia ser alta, baixa, mediana. Se fosse do meu tamanho, melhor ainda, embora, pensando bem, ter namorada alta sempre ajuda na hora de pegar alguma coisa no armário da cozinha. Poderia até mesmo trazer algumas pequenas gorduras na cintura, característica da idade. Agora, Julia teria que ser uma intelectual. Não precisava ser uma intelectual como Simone Beauvoir, mas que pelo menos conhecesse Hannah Arendt. Quem sabe Julia seria uma professora de filosofia da USP. Ou quem sabe alguém doutora em filologia. Ou semiótica? Se falasse francês, então... Se Julia viesse da PUC, seria bom também, mas da Filosofia. Não gostaria muito que fosse da educação. Bobagem, eu aceitaria também.
Entrei no tal site recomendado por Abel e Pedro. Logo que se entra só aparecem as fotos escolhidas a dedo. Depois quando você procura, não localiza mais ninguém. Meu engano foi pensar que funcionaria meio parecido com meu tempo de criança no jardim da praça da cidadezinha do interior paulista. Os rapazes rodavam de um lado e as moças do outro.  Depois era uma piscadinha e pronto. Já desenrolava um namoro. Também pensei que poderia ser como no tempo das baladas quando assumi para o mundo minhas preferências. Ficava no barzinho só nas flechas. Quando acertava já rolava beijo. O mundo virtual é virtual mesmo. E eu me atirei de cabeça. Nem usei codinome. Para começar, separei três pessoas...

Arcos de Muitas Íris - O grande encontro com a vida

Na sinagoga todos vão orar. Na sinagoga da Bela Vista, ou do bairro do Bexiga, todos vão para se localizar. Na década de 50, na década de 60, na década de 70, na década de 80, na década de 90, todos vão à sinagoga para se encontrar. E no novo milênio? Ainda há quem busque a sinagoga para pecar?
Foi lá que me diplomei para a vida. Era um templo com santos e anjos. Havia a calçada. Havia os sonhos. E todos sonhavam. Lá era o reduto, o esconderijo aberto, o gueto iluminado, o palácio das revelações. Havia os mestres e os aprendizes. Comia-se pizza e tomava cerveja. Mas o coração batia em pulsação recorde. Será hoje que minha princesa descerá de sua carruagem e se dirigirá a mim para dizer que finalmente chegou o dia. O dia da revelação. O dia da consumação dos prazeres sonhados.
Durante o dia apenas mais um restaurante. Muita família em grandes mesas, muitas conversas, muitas crianças em choro. Mas quando o sol começava a se despedir, imediatamente, em um passo de mágica, tudo se movia. Mas os garçons eram sempre os mesmos. Nossos protetores, nossos amigos, nossos companheiros, nosso simulacro.
Conheci muita gente por lá: Anas, Beths, Sandras, Marias, Fátimas, Joãos, Josés, malabaristas, artistas, anônimos, ricos, pobres, sargentos do Exército da Salvação... Onde estão todos? A peça em cartaz era sempre a mesma. Mesmo tema, mesmo autor, mesmos atores. Quem sabe agora são celebridades, banqueiros, bancários, professores, doutores, padres-missionários e mendigos. Ou estarão em alguma poeira cósmica só assistindo a juventude que rompeu as cadenas e se pulverizou em toda a parte. Os guetos agora são mais nobres. São requintados. Talvez não haja nem a necessidade de se caminhar até os guetos. É só bater e entrar. Entrar para a vida de quem da vida só espera. Conecta-se com fio ou sem fio. Encontra-se o mundo. Ele está as suas mãos. Basta toca-lo. Quero amar alguém do Cazaquistão ou do Arpoador é só teclar. É só acessar. É só amar.
Tudo mudou. Os códigos são outros, as baladas são outras, os sons são outros, a linguagem é outra. O mundo parece que gira em outro sentido.
Mas, a Sinagoga ainda está lá. Do mesmo jeito e com sua mesma beleza, na esquina da Martinho de Carvalho com a Rua Avanhandava. As preces continuam. Todos oram todos os dias. A sua frente ainda resiste o nosso templo do pecado. Com seus fantasmas, com os mesmos garçons zumbis e com os meus sonhos gravitando ainda por lá...

Arcos de Muitas Íris - José

Descia sempre a Rangel pestana. Poderia ir de bonde, de ônibus ou a pé. Preferia sempre ir a pé. Estudar em colégio de estado era o máximo na época e aquele colégio era da fazer inveja para qualquer um. Assim, desfilar com os livros ostentando o brasão do colégio só não ganhava do orgulho de sustentar a bandeira em dia de desfile de fanfarra. Descia a grande avenida sorvendo aos poucos os rostos do pessoal que estudava de manhã. Mamãe insistia que eu devia arranjar um namorado. Assim, prestava atenção na rapaziada que deixava as aulas. Não posso negar que havia gente interessante. Olhava sempre. Mamãe continuava insistindo e já havia a cobrança das amigas sobre a tal história do namorado. Um dia me detive mais em um rapaz moreno, de sorriso ponta a ponta. Tinha uma pele bronzeada pela natureza. Era de pequena estatura, mas era belo. Seus cabelos estavam sempre voando ao vento da avenida e seus dentes eram caprichosamente brancos. Não havia dúvidas: José de Castro era lindo. Assim, passou a freqüentar meus sonhos, minhas conversas, minhas desculpas, meu imaginário. Descobri que era um artista. Artista moderno, sua arte ninguém entendia, era muito criticado, mas adorado por mim. Amei-o à traição. Quando em uma festa ele chegava ao mesmo círculo que eu estava, dava um jeito para sair fora. Tornar José de Castro real não fazia parte dos meus planos. A irmã da minha amiga mais próxima era amiga dele. Assim, minha amiga estava sempre tramando, como poderia acontecer o nosso encontro. Sempre consegui, com alguma dificuldade, escapar de todos os arranjos. Um dia papai me perguntou porque eu estava saindo tão cedo para a aula. Eu lhe disse que era para ver um rapaz, que era lindo, que tinha um sorriso lindo, que vestia um suéter vermelho. Papai não gostou. Disse-me que tinha dúvidas quanto a homens que se vestiam de vermelho.  Não entendi a observação de papai, e mamãe, que já contava para todos do meu interesse, zangou-se com ele pela observação inoportuna. Um dia José apareceu de perna engessada. Foi a notícia do mês. Ele ficou muito elegante com aquele gesso e todos me perguntavam quando que eu iria deixar uma recordação naquela vastidão branca, que ele ostentava na perna. As histórias eram as mais confusas possíveis. Cada um contava de um jeito como havia sido a queda. Algumas situações eram criadas somente para me provocarem ciúmes, outras eram bizarras, outras inverossímeis. Mamãe continuava insistindo na história do namorado. Quando eu o levaria para lanchar em casa, quando sairíamos juntos ao final de semana, quando, quando, quando. Depois do gesso veio uma bonita bengala que ostentou por um bom tempo. Ficou mais lindo ainda. Um verdadeiro artista. Aliás, artista foi Deus quando o criou. Por azar ou sorte, José desapareceu do colégio. Tive que arranjar substitutos, porque minha mãe continuava me cobrando. Agora já não era só ela: era minha irmã, meus vizinhos, meus parentes próximos e distantes, minha diretora do colégio, minha orientadora de curso, o padeiro, o sapateiro, enfim, todos aqueles que cruzavam a minha vida só sabiam perguntar: e seu namorado? Como ele se chama? Como ele é?  Consegui me livrar de todos. Quer dizer, penso que consegui. Até hoje em qualquer cadastro que preencho tem a pergunta sórdida: nome do cônjuge? Saio do armário, assumo todos os riscos, vou para a vida. Estava eu um dia descuidada em um templo noturno de encontros escusos quando encontro uma médica que estudara no colégio estadual. Era da turma da irmã da minha amiga mais próxima. Reconhecemo-nos e começamos a trocar recordações sobre que o havia sido feito de fulano, beltrano, fulanas e beltranas. Lista vai e lista vem quando de repente aparece o nome de José de Castro. Com toda a candura do mundo Cecília me disse: “Então você não sabe, meu bem. José foi o primeiro a se revelar. Casou-se há muito tempo com um escritor, mas de vez em quando você poderá encontra-lo pela noite. É fácil reconhece-lo. Ainda traz a bengala e o suéter vermelho”. Não fiquei muito surpresa, mas me lembrei de que papai tinha mais olho clínico que eu.

Arcos de Muitas Íris - Narrativa de uma saudade

  Zinha e eu estávamos convencidas. Depois de tantas decepções com nossos futuros colegas de apartamento, não haveria outra saída a não ser morarmos juntas. Ela chegou para mim e disse: "Olha, não deu certo com seu amigo e o meu nem começou a embalar a sua coleção de sapinhos para fazer a mudança. Acho melhor a gente juntar nossas coisas e dividirmos aquele apartamento que lhe falei, porque o aluguel já está vencendo." A gente nem se conhecia direito, mas Zinha me parecia uma pessoa confiável. Aliás, durante toda a minha vida pude constatar que ela além de confiável ela tinha o prazer de ajudar a todos. Cuidava da mãe, visitava os doentes, corria para auxiliar os irmãos e, acima de tudo, vivia em função dos amigos. Apesar de algumas manias anacrônicas nossas, no tempo que vivemos juntas nunca discutimos e soubemos dividir o espaço com tranqüilidade. Eu havia acabado de receber o diploma, o que significava não ter a menor idéia sobre nada. Sabia que queria viver. Por isso mesmo, vivia muito. Amava loucamente a todos e queria namorar o mundo. Zinha agüentou muita fofoca e me defendeu sempre. Nunca disse que eu era inocente, mas nunca me acusou de nada. Zinha adorava fazer supermercado. Eu odiava. Pela sua dedicação, eu decidi que pelo menos esse prazer eu poderia lhe dar. Assim, todas as segundas-feiras eu chegava correndo em casa, arrancava a fantasia e todas as máscaras e ia para minha via cruzes, acompanhá-la pelas alamedas do consumo. Um dia, ao fechar a porta do carro percebi ao meu lado dois olhos verdes inesquecíveis. O olhar era belo, o sorriso cheio de ternura, o rosto sem nenhuma marca. Olhei por um tempo que não sei dizer ao certo que tempo foi esse. Segui de longe todos os seus passos. Vestia uma calça jeans, daquelas já bem usadas, tênis e uma camisa xadrez vermelha - ou seria cor de rosa? Todos os seus movimentos eram naturais, um verdadeiro balé cadenciado. Meu coração ficou em festa. Aos poucos comecei ouvir a voz da Zinha que me pareceu muito longe e foi aumentando até chegar bem perto de mim e me devolver à terra. Quando acordei não vi mais meus olhos verdes, com duas covas próximas aos lábios. Lábios que delineavam a boca que eu já sonhava em beijar. Prevaleceu a voz da Zinha. Desapareceu meu sonho em segundos. Procurei-a por toda à parte: azeitonas, xampus, marmeladas, camembert, livros e discos. Tudo em vão! Miragem é miragem!
 Volto à minha vida de executiva iniciante. Uma longa fila serpenteava o subsolo do prédio principal da empresa pública para se ter acesso aos elevadores. Todos tinham que passar por um corredor estreito e esperar pelo menos uns quinze minutos. Todos, não. Havia exceções. Eram os deuses que desfilavam pelo Olimpo ostentando grandeza e força. Eram inatingíveis, intocáveis. Apenas desfilavam para que todos soubessem reconhecer seus donos e senhores. Tinham sempre um elevador privativo que os aguardava e o cabineiro sempre saudava os deuses dizendo: "bom dia doutor"... Nenhum era doutor, mas todos eram chamados como tal.  Um dia, como todos os dias, estando na tal fila, ousei olhar mais detidamente o desfilar dos deuses. Como por encanto, passa diante dos meus olhos a miragem do supermercado travestida de executiva chefe. Trazia muitos jornais embaixo do braço juntamente com uma pasta de couro marrom. O que era martírio passou a ser prazer. Voava de manhã para esperar a única deusa do desfile. Passava sempre com passos rápidos, olhando para um ponto no infinito. Jamais se detinha nos rostos dos escravos maltrapilhos e maltratados. Passava linda como a vi pela primeira vez. Verdadeira deusa e como deusa, inatingível. Uma vez minha deusa me telefonou de forma fria e distante. Falou firme e direto. É provável que eu não consegui realizar seu pedido pois não conseguia entender uma só palavra, tal a minha emoção. Coração saiu pela boca, pernas tremeram, suei frio, gaguejei e nada fiz e nada aconteceu. Deixei de morar com Zinha, amei muitos amores, minha deusa foi morar no exterior, voltou, transformou-se em minha amiga e hoje como sempre, após trinta anos, continua linda, inteligente, culta, mas uma  deusa, uma deusa inatingível....

Arcos de muitas Íris - Todos vão à casa de Oswaldo

 Existe um templo em Brasília. Há muitos templos em Brasília. Esse, entretanto, tem uma crença diferente. Ninguém sabe precisar ao certo a data de inauguração. Mas, todos conhecem. Estudantes, burocratas das repartições públicas, comerciários, diplomatas, políticos e seus filhos, militares e seus filhos, aposentados, cabeleireiros, costureiros, mascarados, enfim todas as tribos que têm suas tendas armadas na aldeia do planalto central. Ninguém sabe também explicar ao certo porque aquele local é divino. Todos têm histórias para contar de lá. Alguns já foram muito felizes, outros não conseguiram realizar seus sonhos e muitos ainda esperam ser felizes. Para alguns é o inferno, para outros o templo é o paraíso esperado, a terra prometida. Para ir até lá todos se vestem. Maquiam-se com esmero. Cada costura da roupa é preparada cuidadosamente. Estando lá, todos se despem, atiram ao longe a máscara e surge a vida. Ali tudo nasce outra vez. Tudo ressurge do chão, brota como a flor e espalha perfume e beleza para todos os cantos. O cerimonial da dança é rico em coreografias e a leveza dos passos traduz as mais belas esculturas já criadas. São deusas, são atletas de maratonas, são virgens com suas vestes castas. O templo já foi ambientado de diversas formas. Jamais saberei descrever qualquer uma delas. Como se um óculos tridimensional fosse distribuído na entrada, cada qual vê o que quer ver. Um céu azul com um arco íris pintado. O inferno de Dante. Um campo com a mais bela relva para se rolar. Um campo de concentração. Um purgatório. Uma nuvem que desliza graça ao sopro divino. Tudo é festa, tudo é dor. Todos são cúmplices. Os rostos são belos. Os rostos são tristes.  À luz da realidade ninguém conhece o templo. Todos se espantam quando alguém diz que naquela galeria existe um lugar proibido. Quando lúcido, ninguém sabe dizer ao certo qual é o endereço do pecado. Mas, quando o relógio marca vinte e três horas da sexta-feira, todos abrem a porta do coração e mergulham no rastro da vida, propondo-se ser feliz. São gerações e gerações formadas naquela academia. São almas que rondam os corredores estreitos lendo o livro da eternidade. Muitos retornam lá para se lembrar da ciranda da paixão. Eu também já tive meu cartão de ponto pendurado na chapeleta da fábrica de fantoches. Foram anos de dedicação. Fui feliz, sofri, desiludi-me. Nunca mais voltei. Mas, sempre que passo por lá, meu coração bate mais forte, as lembranças voltam em segundos, todos os personagens desfilam em meu olhar. Rezo, oro, clamo aos céus e peço que todos, no fundo, continuem freqüentando a casa de Oswaldo e encontrem seus pares e mergulhem na mesma felicidade que eu vivo agora.

Arcos de Muitas Íris - Uma grande paixão - Um péssimo começo

Todas a sextas-feiras eu ia até lá. Algumas semanas eu ia também aos sábados. Aos domingos só se fosse para o almoço. Afinal, a segunda-feira está sempre coladinha com o domingo, e não é permitido ser feliz aos domingos a partir da seis horas da tarde. Não me conformava, que o tempo estava passando e até aquela data não havia acontecido ninguém em minha vida. Eu frequentava o local com aquela rapaziada que chamava de amigos mas, que, no fundo,  nem sabia o sobrenome. Às vezes, não sabia nem o próprio nome, chamando-os só pelo apelido. Todos sempre muito felizes, contando os feitos da semana ou as mentiras permitidas da época. Eu encarava todo mundo olho a olho tentando identificar minha princesa encantada.  Gente entrava e saía e nada acontecia. Passou um bom tempo assim. Quando eu me preparava para sair, tinha certeza que seria naquele dia que minha vida ia se transformar. Passavam as horas, comia-se pizza, esticava a noite para uma boate próxima, e nada acontecia. Tentei adotar um estilo de roupa, tentando impressionar naquele lugar onde o blusão de couro preto e a calça jeans eram o máximo da moda. Eu tinha carro. Não era nenhuma sensação do momento, mas era um carro. Antes de estacioná-lo, sempre passava primeiro na porta do bar para que todos pudessem me ver.  Assim se alguém se interessasse por mim já ficava ciente que não voltaria a pé para casa. Eu considerava isso uma vantagem muito grande. Todos esses esforços foram em vão. Definitivamente ali não seria a minha escalada para o sucesso. Acredito que precisou quase um ano de investimento em pizza para acontecer o grande dia. Meus vinte anos estavam sedentos de amor e meu corpo não tinha ainda uma idéia bem definida sobre as maravilhas do prazer. Foi então que aconteceu o grande dia. Realizando a mesma encenação, que era própria do lugar, alguém passou de carro, bem devagarinho, olhando a todos os presentes que ruidosamente se instalavam  na varanda do bar. Meu coração deu um sobressalto. Depois, como se nada lhe interessasse, acelerou o carro e partiu. Meu coração voltou a bater normalmente. Conversei, contei piada, ri, quase que disfarçando, para que ninguém notasse a emoção rápida e frágil pela qual eu acabara de passar. Olho novamente para a porta do bar. O mesmo carro estava lá. O mesmo olhar encontrou o meu. O carro acelerou mais uma vez, e meu coração ficou assim, sem saber se voltava a bater normalmente ou se esperava mais um pouco. Tentei respirar. Procurei um assunto interessante para começar e que pudesse me fazer esquecer que estive tão próxima da tão esperada felicidade. Não consegui nada. Olhei para frente do bar e nada havia ali, a não ser as mesmas caras de sempre. Quem estava comigo tentou falar alguma coisa e eu não entendi nada. Meus ouvidos não escutavam, minha boca não conseguia pronunciar nada. Queria voltar para a casa, chorar no meu travesseiro, pedir colo, sei lá. Minha alma só perguntava: quando poderei vê-la novamente? Fez-se um escuro à minha volta, até o momento que fui acordada por alguém que me pedia para acender o seu cigarro. Indescritível a cena, mas ela estava lá, muito mais linda do que no carro. Era verdadeiramente bela. Belo era o seu sorriso. Suas mãos representavam todo o carinho do mundo que sempre sonhei para mim. Seu jeito de ser era novo. Sua maneira de falar encantadora. Minha cabeça girou, meu corpo rodopiou e minha alma se entregou. Seguiram-se muitas emoções. Eu acreditei, eu confiei, rasguei meu coração. Arrebentei valores. Sofri e não fui feliz. Bruna trazia dentro de si o mal da sedução. Seduzia a tudo e a todos que dela se aproximava. Seduziu minha família, meus amigos, os animais de estimação dos meus amigos, enfim, tudo. Eu passei a ser apenas o veículo que possibilitava suas conquistas.
Dessa emoção restou-me apenas o sentimento  de angústia em saber que eu ainda não havia me iniciado no mundo de ternura, que um dia me transformaria em uma verdadeira mulher. Sei da paixão, isto foi verdade. Assim como é verdade que tão logo a ferida foi curada eu estava lá, novamente na frente daquele bar, passando bem devagar com meu carro, para  avisar,  caso alguém se interessasse, que não voltaria a pé para casa.

Arcos de Muitas Íris - Na igreja, rezas e sonhos

Não é fácil ter doze anos na cidade de São Paulo. Não é fácil também carregar dentro de si algo que não se explica. Não é fácil ainda, carregar alguma coisa dentro de si e não saber como explicar e nem saber a quem contar. Imagine tudo isso e acrescente ser católica em 1964. Imagine, imagine, imagine.
A igreja era linda. Barroca, construída em taipa. Adorava ir até o museu do Ipiranga para ver a miniatura de São Paulo no tempo da independência. Era maravilhoso ver a minha igreja lá, desde aquele tempo. Dizem que no percurso do dia 7 de setembro, D. Pedro passou por lá. Será que ele se emocionou o tanto que eu me emocionava? Tinha um cristo nu coberto por um manto vermelho. Bem vermelho. E o Cristo me olhava, me olhava, me olhava... Talvez tivesse as mesmas dúvidas que eu tinha. Ou, então, simplesmente me avisava que não precisava ter dúvidas. O que me intrigavam eram as suas feridas. Eram profundas. Aí eu pensava que a culpa era toda minha. Será que era só por conta dos meus pensamentos ou também porque eu tinha fumado escondido. Tudo era pecado. Eu só não conseguia distinguir qual era o maior. Para a missa aos domingos, minha mãe e minha irmã caprichavam na minha roupa e nos meus sapatos. Os sapatos eram sempre lindos. Depois que cresci nunca mais consegui comprar sapatos tão lindos, embora eu compre sempre muitos sapatos, talvez, para um dia conseguir comprar um tão lindo quanto aqueles. Havia um banco que parecia ser reservado para a minha família. Não que fossemos assim tão importantes. Aliás, não éramos nem um pouco importantes. Mamãe fazia parte da Congregação das Senhoras da igreja, mas nunca teve uma participação muito expressiva. Nunca foi presidente, secretária ou tesoureira. Era apenas uma pessoa muito querida. Talvez pela empatia que ela provocava e provoca até hoje em quem se aproxima dela. Papai mal conseguia assistir a missa inteira. Fumante desde os treze anos de idade, sempre considerou a missa muito longa para um intervalo entre os cigarros. Minhas irmãs, na realidade, não gostavam muito daquela igreja porque diziam que só tinha velhos e que não dava para paquerar ninguém. Eu, ao contrário, gostava muito. Prestava atenção na soberania do Padre. Era muito bravo e rezava a missa em latim em um tom bem alto, a todo pulmão. Os sermões eram sempre para dar bronca nos pobres fiéis. Fiéis mesmo, pois todos os domingos estavam sempre lá. Sempre os mesmos. Dona Darcy com seu Juca e os meninos. Mamãe e Dona Darcy tinham certa cumplicidade, pois acreditavam que eu e o mais velho deles um dia nos casaríamos. Pobre Mamãe! Acalentou mais sonhos além desse. No início da rua havia um casarão de um pessoal quatrocentão que insistia em sobreviver aos arranha-céus da modernidade. Dessa casa, freqüentavam a missa: a empregada, também quatrocentona, uma das velhas senhoras, talvez mãe ou tia, e uma das netas. As irmãs mineiras do meu prédio também lá estavam sempre. A Verinha que estudava em um colégio tradicional, sua mãe e seu padrasto. Eles tinham cara de ricos. Mas, depois fiquei sabendo que era só a cara. Mais algumas Donas do tipo, Bela, Clarinda, Hermínia, Olga, cujos maridos e filhos se recusavam a acompanhá-las na missa das oito. Na rua que abrigava uma das laterais da igreja, havia um pequeno edifício que fora construído para a habitação de uma só família. Eram duas irmãs elegantes, casadas com seus maridos feios, mas elegantes, com suas filhas bonitas e elegantes, mas que tinham um pé muito grande, por isso, quase que por despeito, minha família chamava-as de “pezudas”. Elas também davam a honra aos domingos na missa das oito.
 Eu era uma figura importante, pois era encarregada da coleta da contribuição dos fiéis. Escutava atentamente o sermão, contando todas as palavras. Não podia dormir, porque assim que o padre acabasse sua bronca matinal, eu tinha que me levantar e começar a passar, banco por banco, arrecadando, a duras penas, o miúdo dinheiro que caia no chapeuzinho de feltro que eu com muita honra carregava. Esse momento era para mim o mais importante de toda a cerimônia. Ficava sabendo quem faltou, percebia as pessoas novas do bairro e principalmente poderia olhar bem no fundo dos olhos de alguém, que se sentava no último banco da igreja. Para mim, era a mulher mais linda que conheci até aquela idade, com exceção, com certeza, da nova mulher do Tony Curtis, que até hoje não sei como se escreve o nome dela. Mas, voltando a minha segunda mulher mais bela, ela só existia dentro da igreja, na missa das oito. Nunca a vi pelo bairro. Nunca soube quem era. Na realidade, não sei descrevê-la e seu rosto para mim, se tornou uma nuvem. Mas seu olhar até hoje anda comigo, escondido, bem guardado, lá fundo. Às vezes, quando estou triste, abro as gavetas da minha alma, olho para aquele olhar e volto a me sentir feliz, como se estivesse novamente olhando para o meu primeiro amor.

Arcos de Muitas Iris- Festa do Kiño

 Como sempre fazia no mês de maio,  preparei-me para fazer uma viagem a São Paulo. Já há algum tempo, desde quando decidi transformar Brasília em minha terra, a coisa funcionava do mesmo jeito. Eram datas que coloquei como imprescindíveis para eu rever aqueles que eu amava e que povoavam a minha história - natal ou ano novo e aniversários do pai e da mãe, de irmãos, da tia querida, de sobrinhos e, principalmente, o aniversário do Kiño. Afinal, ele foi muito importante na minha vida quando optei em tirar qualquer tipo de máscara e viver plenamente a vida. Devo confessar que teve muita paciência comigo. Primeiro, foi se chegando bem de mansinho na imensa repartição que trabalhávamos. Ofereceu ajuda burocrática. Aceitei, foi confortável. Depois me convidou para almoços, assistir jogos no Pacaembu - como bom corintiano que era, festas na casa dele e tudo que pudesse nos aproximar cada vez mais. Eu tentava simular o padrão da época. Vinha com histórias mirabolantes e rocambolescas sobre namorado do interior, rapazes interessantes e outras desculpas esfarrapadas. Mas, dono de uma paciência invejável, soube aguardar o momento. E quando esse momento aconteceu, Kiño se fez presente. Acompanhava-me em todas idas e vindas. Fazia isso com tanta tranqüilidade que nunca julguei seus conselhos como cabrestos, mas os aceitava como sendo a expressão fiel de quem me amava. Fizemos durante muito tempo verdadeiras maratonas na noite paulistana e com isso conhecemos muita gente. Gente de todos os tipos que agora já não sei mais onde foi parar. Kiño adorava cinema. Tinha um pequeno diário com todos os filmes que assistira durante a sua vida, mas, na realidade, ele nem precisava disso, porque sempre sabia colocar uma cena ou um diálogo curioso de algum filme ou mesmo de uma peça de teatro. Sabia fazer com tanta maestria que,  para os menos avisados, poderia passar como pura criatividade sua... Naquele dia eu estava eufórica porque ira revê-lo. No avião fiquei pensando quem tanto poderia estar nessa festa já que nossos amigos de antigamente tinham se transformado em nuvens... Apertei a campainha com uma expectativa muito grande. Como de hábito, quando a porta se abriu vieram exclamações ruidosas  de todos os presentes. Muitos abraços, muitos beijos, muitas comidas gostosas, que o dono da casa sabia fazer com perfeição. Trazia aquele jeito característico do povo do interior e sempre surpreendia com alguma receita nova que uma das suas irmãs havia lhe mandado. Acho que eram umas seis irmãs, no mínimo. Aquela festa já trazia uma novidade para mim e eu tinha que trabalhar com cuidado essa novidade. Desde quando nos conhecemos e estabelecemos nossa cumplicidade, enquanto eu já havia me comprometido com uma dezena de pessoas, o Kiño jamais havia namorado sério. Namorar sério aqui, quer dizer, ficar mais de, pelo menos, seis meses com alguém, ter compromissos de férias, traçar alguns planos para o futuro, e até mesmo, morar juntos dividindo banheiro e pasta de dente. Pois naquele dia eu iria conhecer aquele a quem resolveu dar a sua mão. Tracei muitas possibilidades de perfis, como por exemplo, é alto, tem bigode, usa óculos, entende de teatro, cinema e música, características indispensáveis para quem quer ser seu namorado. Afinal, até aquele momento ele não tinha tido ninguém, porque sua triagem era rigorosa. Erro de português, nem pensar. Formou-se em geografia em uma universidade famosa paulista e lá conheceu um grupo dos tidos intelectuais da época para quem nada poderia passar como traço de ignorância. Quem cometesse qualquer deslize era logo enxovalhado e excluído do grupo. Com certeza o novo namorado preenchia essas características todas, pois do contrário não teria resistido uns catorze meses até aquela data. Foi então que conheci Adaílton. Tudo começou quando Kiño fazia a conhecida peregrinação na Rua Vieira de Carvalho, aquela rua que liga a Praça da República com o Largo do Arouche, que, há muito tempo, se traduziu em trajeto daqueles que necessitavam de companhia para uma noite. Adaílton era do Paraná, casado e com filhos, mas um dia resolveu mudar a sua história e tomou um ônibus com destino a cidade dos sonhos. Em suas andanças, ficou sabendo que ali, naquele quadrilátero, poderia encontrar uma razão maior para a vida. Imagino que no primeiro momento, o Kiño deve ter dados gritinhos silenciosos de desespero pelos erros de português. Mas, o moço tinha muito mais a oferecer do que esses frágeis detalhes - tinha uma certa predisposição para o amor. Depois fiquei sabendo que também sabia fazer pão e licores muito saborosos. Tentei iniciar uma conversa daquelas que tenta ser diferente, mas não foge ao lugar comum. Com todo o ciúme de amiga-irmã, à primeira vista, obviamente, não fui com a cara de Adaílton. Comecei a compará-lo com aqueles que ficaram no passado e que nunca souberam falar ao coração do Kiño. Com certeza para mim naquele momento todos eles superavam qualquer manifestação de simpatia da parte dele. Enfim, a festa se transcorreu como sempre. De repente, alguém se lembrava de perguntar por outro que estava ausente ou então de contar alguma história bizarra, que era contada e recontada em quase todas as festas. Comecei a reparar em um instante que aquele encontro era um pouco diferente dos demais.  Além de contar com a presença de um namorado, o ambiente só contava com mulheres. Eram as amigas que Kiño sempre teve o cuidado de nunca se separar. Algumas vinham do tempo da velha repartição pública, como eu, outras eram da universidade e outras eram amigas colhidas pelas peregrinações da vida. Quando o aniversariante sentiu que ia começar a dar o cansaço natural nos presentes, pois já estávamos por volta da uma da madrugada, resolveu pedir a atenção de todos porque precisava comunicar alguma coisa importante. Risos, piadas, alguém tentou adivinhar o que poderia ser e lançou a idéia que ele teria comprado um carro, uma vez que odiava dirigir. Nada, entretanto, teve eco. Kiño tentou algumas palavras. Não conseguiu formar nenhuma frase. Passados alguns minutos, lentamente levantou a cabeça e disse: “aquela senhora resolveu se hospedar aqui”. Ninguém entendeu e o silêncio tomou conta de todos. Então, declarou firme, como sempre fazia quando queria chocar: “sou soropositivo”. Foi só uma flecha, porém todos os corações explodiram, ficaram arrebentados, sangrando... Definitivamente, não havia o que dizer... Então, ele foi enfático: "Sou soropositivo com algumas manifestações. Vocês estão lembradas quando voltei da Bahia e passei mal durante um tempo? Foi ali que tudo começou. Adaílton também é soropositivo, só que até agora nada foi detectado. Quero que saibam o quanto ele tem sido importante para mim.  Meu amor, meu enfermeiro, meu companheiro, meu irmão, meu médico e meu amante. Peço-lhes que todo amor que me deram até hoje seja dado para ele também".
 Olhou mais uma vez para todas nós, esperou um pouco para ver se alguém tentaria alguma frase piegas, mas como ninguém ousou, encheu o pulmão e disse mais uma vez com sua voz firme: “afinal, vamos ou não vamos comer o bolo de aniversário? Eu lhes asseguro que esse não será o último”.
  Realmente não foi o último bolo de aniversário. Administrou a doença com a cabeça na terra e muito amor na vida de forma a ficar conosco mais dez anos. Alguns se foram nesse período por muitas outras causas. Quando ia aos velórios sempre encarava os presentes com um sorriso de forma a dizer: “não adianta se assustar que eu ainda estou por aqui”. Adaílton não sobreviveu nem um ano após a morte de Kiño.
Somente a partir desse dia entendi o que é amar.